quinta-feira, outubro 18, 2012

O Céu, as estrelas e a chuva da morte - II


PARTE DOIS – A morte passou por aqui...





A desgraça acontecia. O desespero, o cheiro de morte, a sensação macabra, o clima diabólico e tudo que nos tirava negativamente o fôlego. Eu vivia a noite mais macabra de minha vida. E tudo acontecia tão rápido. Hoje tenho consciência de que “algo além” estava no controle de toda aquela situação, e foi exatamente isso que permitiu sobrevivermos, até ali, ilesos. Era uma gritaria total. Eram rugidos para todos os lados. Pessoas correndo e chorando. Mas não tínhamos tempo para refletir. A única coisa a fazer era seguir o nosso caminho. E isso, naquele momento, era o melhor que poderíamos fazer. Não termos o mesmo destino de todas as outras pessoas. Por isso corríamos. Corríamos muito. O máximo que podíamos. Dando passadas no vazio, e às vezes quase caindo. Assim, prosseguimos. Rumo ao nada, ao vazio.

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O prédio ficava localizado a dois blocos de onde estávamos. Corríamos tentando evitar os locais onde víamos problemas. A morte estava em todo canto, a gritaria era geral e a confusão era total. Lembro-me de ver pessoas sendo partidas em duas, cabeças sendo violentamente arrancadas e membros sendo decepados. E nós só podíamos correr. Chegamos a um prédio que servia de centro de convenções para a universidade. Este era um espaço semi-aberto com uma longa cobertura de metal sustentada por vigas de aço e decorado com belas paredes de vidro. Paramos abruptamente na entrada quando vimos oito monstros fazendo uma carnificina enquanto uma multidão, encurralada, gritava de desespero. Fiz um gesto para Miranda apontando para o conjunto de árvores que seguia a direita do local. Corremos para lá. Parecia ser um local mais seguro. Este espaço era repleto de árvores e pequenos arbustos. Denso, quase um bosque. Aos poucos nos agachamos aproveitando o terreno e tentando nos esconder.  Sem notar já estávamos nos rastejando. A noite subitamente ficou fria. Uma névoa começou a cobrir os arbustos. Lá estava eu, afundado e humilhado no chão, me rastejando por entre as folhas. Não havia algo melhor a fazer. Tem momentos em que o medo faz com que deixemos nosso orgulho de lado. Em uma situação dessas não há espaço para medir e avaliar. Muito menos fazer julgamentos. Eu, uma pessoa racional, só exercia ali uma única função. A de quem corre. Ou melhor, a de quem foge. Foge do predador e da dominação.

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Senti algo passar correndo por cima de mim. Quando virei à cabeça vi a fera que passou. E quando eu já estava comemorando o fato dela não ter nos notado, ela parou abruptamente e se virou. Não podia nos ver por entre os arbustos, mas será que podia nos sentir? Não sei. Toquei o pé de Miranda, a minha frente, para não nos mexermos. A besta olhava de um lado para o outro parecendo procurar algo. Tinha um corpo esguio como o de um dinossauro caçador, pêlos, e uma cabeça que não sei se parecia mais com a de um crocodilo, ou de um cão defeituoso. Mas era amedrontadora. Se o inferno existe, o diabo deve se parecer com aquele monstro. Minha cabeça fervia diante daquela visão. Começava, naquele instante, a aceitar um fim violento para mim e para meu amigo. Não escaparíamos dessa vez. Mas têm coisas que acontecem e não há como explicar. Para minha surpresa escutei outro movimento mais a frente. Acima de nossas cabeças a lua brilhava como nunca antes. Seu volume naquela noite era absurdamente maior do que qualquer outra vez em que ela se apresentou ao mundo... Guiado pelo som vi um cão surgir por entre as árvores. Ele estremeceu quando viu a fera, mas ainda assim começou a latir. O cão pode até ter se assustado, afinal, quem não se assustaria com o próprio diabo? Entretanto, medo ele não demonstrou. Encarou a fera com bravura. Dava até sinais de que avançaria. Mas o pior aconteceu. Aquela imagem ficou marcada em minha mente. A besta fez um movimento rápido jogando o cão contra a árvore. Pude ouvir seus ossos se quebrando. O cão ficou se contorcendo enquanto o monstro se aproximava. Tive que ser forte para vê-lo sendo desossado. Foi uma cena horrível. Não pude fazer nada. Quando já recuperava minha respiração, do mesmo lugar de onde o cão surgiu apareceu uma jovem. O monstro não a notou. Talvez fosse a dona do cão porque arregalou os olhos e levou as mãos à boca de tamanho horror. Ali, agachado na escuridão, consegui reparar as lágrimas em seus olhos. E a lua continuava brilhando... A menina estava arrasada. Mas, para minha surpresa ela se abaixou e pegou um pedaço de madeira solta no chão que devia ter caído de alguma das árvores. Disparou gritando de ódio contra o monstro. A garota não teve nenhuma chance. Preferi não olhar. E mesmo me negando a ver, ouvi os gritos de uma morte abominável. Quando os gritos cessaram o demônio pegou sua caça e foi embora. - Willian, temos ir agora. - Que inferno, não sei o que fazer. - praguejou. - Eu também não! Mas se não nos mexermos seremos os próximos!

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E talvez seriamos, porque algo perturbou-me a esquerda. Prendi a respiração. Virei lentamente a cabeça e fitei os olhos vermelhos de um espectro horrendo que me contemplava da escuridão. Naquele momento parecia que tudo havia parado. A respiração, os batimentos cardíacos, o frio, o tempo, menos o brilho da lua que era cada vez mais intenso. Senti a respiração da diabrura agitar o ar ao meu redor. Tentei me levantar inutilmente, mas meu corpo já não respondia ao desespero. Miranda estava paralisado. Nossa sentença estava anunciada. Seriamos trucidados. Éramos nós e fera. Dois contra um. Porem, a derrota para nós era algo certo. E a fera sabia bem disso. Por se movimentava bem devagar, nos avaliando. Queria dar o bote certo. O golpe perfeito. O tiro de misericórdia. Vi seu rosto se aproximar. Seus olhos crescerem diante de mim. Pude ver a face do inferno. Sua expressão a cada segunda ficava mais amedrontadora. Foi então que ela atacou... Quantas coisas nós pensamos num momento desses. É incrível como apenas alguns segundos são capazes de resumir toda uma existência. Nessas horas a gente entende por que as pessoas dizem que passa um filme em nossa cabeça. Naquele instante eu só queria voltar a minha vida normal. Só gostaria de tomar café ou, quem sabe não fazer nada. Só não fazer nada já bastava... Fechei os olhos e gritei. De dor, de desespero, de medo. E continuei gritando, e gritando. Gritando até sentir minha garganta arder. Gritando até perceber que nada havia acontecido. Quando abri os olhos vi dois monstros tentando se levantar. Pareciam estar um pouco tontos. Na hora não dá pra pensar, mas provavelmente havia duas feras a nossa espreita, o que era pior, e aos nos atacarem devem ter se chocado. Mas agora precisávamos correr. Elas já recuperavam o sentido e já nos olhavam. Em segundos eu e Miranda corríamos por entre as árvores. As feras partiram em nossa caçada berrando a canção da morte. Elas eram bem mais rápidas e estavam nos alcançando rapidamente. Quando uma delas estava prestes a me golpear com uma das mãos cheias de garras Miranda já estava me empurrando para a direita. Os dois monstros passaram direto batendo nas árvores a frente. Nós caímos por entre os galhos e arbustos. Recebi um corte quando bati meu braço em uma árvore. Miranda tinha um sangramento na testa. Levantamos e continuamos correndo. Pude sentir o ódio que nos perseguia. O puro ódio. E de súbito, tudo se apagou. Não havia mais lua, não havia mais nada.

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Sentia dores nas costas, na cabeça, tonturas. Estava acabado, moído, retorcido, deprimente. Abri os olhos e não enxerguei nada. Por um instante não ouvi nada. Mas apesar de tudo não parecia que algo mais grave havia me acontecido. Mas e Miranda? Quando consegui recuperar os sentidos e consegui enxergar um pouco notei Miranda desacordado ao meu lado. Estava respirando. Menos mal. Mas o que havia acontecido? O primeiro som que notei foi uma gota d'água que caia num ritmo bem lento. Não enxergava praticamente nada. Tive a ideia de pegar meu celular para tentar iluminar, mesmo que debilmente, o local. Percebi que estava num lugar úmido. Meio sujo. Olhei para cima e um pouco distante vi uma abertura por onde a luz entrava bem fraca. Folhas de árvores desciam levemente de lá até o chão. “Provavelmente deve ter sido de lá que viemos quando mergulhamos no vazio eterno”, pensei. Senti uma movimentação perto dos meus pés. Era Miranda despertando com gemidos. - o que aconteceu? - perguntou Miranda. - Caímos de lá. - disse eu apontando para a abertura no teto. - Uma queda e tanto. Ajuda-me a levantar. - Temos que dar um jeito de prosseguir. - disse eu. - Não antes de sabermos aonde viemos parar. - Isso deve ser uma espécie de esgoto. - Ou talvez possamos descobrir o que mais pode ser isso. - sugeriu Miranda. - Então Vamos! - Mas, talvez não seja má ideia ficar por aqui mesmo, pois se não fomos devorados é porque aqueles bichos não conseguem entrar aqui. - Por enquanto. - Disse eu.

Começamos a vasculhar o local. Era uma sala de cinco metros de altura. Cada um dos seus quatro lados também media cinco metros. Chegamos a uma porta de metal, muito velha, que tinha escrito "A morte passou por aqui". Provavelmente obra de algum universitário grafiteiro. Eu e meu amigo tentamos abrir a porta que parecia estar emperrada. - Deve ser a ferrugem. - disse Miranda. - Põe na conta do Reitor e de seu Camaro. - disse eu. - Rimos juntos. Foi um dos raros momentos de riso naquele dia. Mas tudo foi quebrado por um berro monstruoso vindo de cima de nossas cabeças. Virei-me e olhei para o alto. Um braço tentando entrar pela abertura no teto. Depois uma cabeça. E outro braço. A fera não havia desistido de nós! Ou será que nos escutara? A verdade é que dentro de alguns instantes estaríamos presos naquele cubículo úmido com um monstro. Tive vontade de gritar! Não aguentava mais aquilo tudo. Não queria mais fugir. Estava disposto a encarar a realidade. Não fugiria mais. Encararia o monstro. E se fosse para morrer seria lutando. Inutilmente mais lutando. Quando eu ia dar um passo à frente ouvia u ruído. O braço de Miranda puxava meu braço e me chamava, mas por um segundo eu não tinha ouvidos, só olhos para o monstro. Miranda me tocou mais uma vez. - Estou quase conseguindo abrir a porta, seu infeliz. Mas se você não se mexer e não me ajudar de nada vai adiantar. - Me virei rapidamente e comecei a ajudá-lo a abrir a porta. Ela estava muito emperrada. Mas Miranda já havia conseguido abri-la um pouco. A fera emitiu um ruído desafiador. Estava quase conseguindo entrar no recinto. Como que movidos pela vontade de viver eu e Miranda respiramos fundo e puxamos com todas as nossas forças de uma só vez. Lentamente a porta se abriu. A fera pousou atrás de nós. Entramos o mais rápido que podíamos, mas havia um problema: como fechar aquela porta enferrujada. Não sabíamos. A fera veio em nosso encalço. Fizemos toda a força que nos restava naquele instante para fechar a maldita porta. A morte não passaria por esta porta outra vez. Pelo menos não naquele momento, pois por um milagre a porta se fechou facilmente. Passamos a tranca. A fera se chocou violentamente contra a porta berrando suas monstruosidades. Fez isso um, duas, três, quatro vezes e depois parou. - Parece ser seguro aqui. - sugeri. - Assim espero. - disse Miranda. - Viramos-nos para ver onde estávamos.  Quase fiquei cego, pois agora o local era muito bem iluminado. Tochas lançavam luzes tremeluzentes por todo um longo corredor. – É realmente aqui é mais agradável. - deu de ombros Miranda. - Porém, um som violento veio de trás de nós. O monstro tentara mais uma vez destruir a porta, só que dessa vez ele obteve mais sucesso. A tranca estava quase quebrando. De repente um braço atravessou o metal envelhecido da porta. A morte estava querendo passar...

FIM DA PARTE DOIS.

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