PARTE DOIS – A morte passou
por aqui...
A desgraça acontecia. O
desespero, o cheiro de morte, a sensação macabra, o clima diabólico e tudo que
nos tirava negativamente o fôlego. Eu vivia a noite mais macabra de minha vida.
E tudo acontecia tão rápido. Hoje tenho consciência de que “algo além” estava
no controle de toda aquela situação, e foi exatamente isso que permitiu
sobrevivermos, até ali, ilesos. Era uma gritaria total. Eram rugidos para todos
os lados. Pessoas correndo e chorando. Mas não tínhamos tempo para refletir. A
única coisa a fazer era seguir o nosso caminho. E isso, naquele momento, era o
melhor que poderíamos fazer. Não termos o mesmo destino de todas as outras
pessoas. Por isso corríamos. Corríamos muito. O máximo que podíamos. Dando
passadas no vazio, e às vezes quase caindo. Assim, prosseguimos. Rumo ao nada,
ao vazio.
...
O prédio ficava localizado a
dois blocos de onde estávamos. Corríamos tentando evitar os locais onde víamos
problemas. A morte estava em todo canto, a gritaria era geral e a confusão era
total. Lembro-me de ver pessoas sendo partidas em duas, cabeças sendo
violentamente arrancadas e membros sendo decepados. E nós só podíamos correr.
Chegamos a um prédio que servia de centro de convenções para a universidade.
Este era um espaço semi-aberto com uma longa cobertura de metal sustentada por
vigas de aço e decorado com belas paredes de vidro. Paramos abruptamente na
entrada quando vimos oito monstros fazendo uma carnificina enquanto uma multidão,
encurralada, gritava de desespero. Fiz um gesto para Miranda apontando para o
conjunto de árvores que seguia a direita do local. Corremos para lá. Parecia
ser um local mais seguro. Este espaço era repleto de árvores e pequenos
arbustos. Denso, quase um bosque. Aos poucos nos agachamos aproveitando o
terreno e tentando nos esconder. Sem
notar já estávamos nos rastejando. A noite subitamente ficou fria. Uma névoa
começou a cobrir os arbustos. Lá estava eu, afundado e humilhado no chão, me
rastejando por entre as folhas. Não havia algo melhor a fazer. Tem momentos em
que o medo faz com que deixemos nosso orgulho de lado. Em uma situação dessas
não há espaço para medir e avaliar. Muito menos fazer julgamentos. Eu, uma
pessoa racional, só exercia ali uma única função. A de quem corre. Ou melhor, a
de quem foge. Foge do predador e da dominação.
...
Senti algo passar correndo
por cima de mim. Quando virei à cabeça vi a fera que passou. E quando eu já
estava comemorando o fato dela não ter nos notado, ela parou abruptamente e se
virou. Não podia nos ver por entre os arbustos, mas será que podia nos sentir?
Não sei. Toquei o pé de Miranda, a minha frente, para não nos mexermos. A besta
olhava de um lado para o outro parecendo procurar algo. Tinha um corpo esguio
como o de um dinossauro caçador, pêlos, e uma cabeça que não sei se parecia
mais com a de um crocodilo, ou de um cão defeituoso. Mas era amedrontadora. Se
o inferno existe, o diabo deve se parecer com aquele monstro. Minha cabeça
fervia diante daquela visão. Começava, naquele instante, a aceitar um fim
violento para mim e para meu amigo. Não escaparíamos dessa vez. Mas têm coisas
que acontecem e não há como explicar. Para minha surpresa escutei outro
movimento mais a frente. Acima de nossas cabeças a lua brilhava como nunca
antes. Seu volume naquela noite era absurdamente maior do que qualquer outra
vez em que ela se apresentou ao mundo... Guiado pelo som vi um cão surgir por
entre as árvores. Ele estremeceu quando viu a fera, mas ainda assim começou a
latir. O cão pode até ter se assustado, afinal, quem não se assustaria com o
próprio diabo? Entretanto, medo ele não demonstrou. Encarou a fera com bravura.
Dava até sinais de que avançaria. Mas o pior aconteceu. Aquela imagem ficou
marcada em minha mente. A besta fez um movimento rápido jogando o cão contra a
árvore. Pude ouvir seus ossos se quebrando. O cão ficou se contorcendo enquanto
o monstro se aproximava. Tive que ser forte para vê-lo sendo desossado. Foi uma
cena horrível. Não pude fazer nada. Quando já recuperava minha respiração, do
mesmo lugar de onde o cão surgiu apareceu uma jovem. O monstro não a notou. Talvez
fosse a dona do cão porque arregalou os olhos e levou as mãos à boca de tamanho
horror. Ali, agachado na escuridão, consegui reparar as lágrimas em seus olhos.
E a lua continuava brilhando... A menina estava arrasada. Mas, para minha
surpresa ela se abaixou e pegou um pedaço de madeira solta no chão que devia
ter caído de alguma das árvores. Disparou gritando de ódio contra o monstro. A
garota não teve nenhuma chance. Preferi não olhar. E mesmo me negando a ver,
ouvi os gritos de uma morte abominável. Quando os gritos cessaram o demônio
pegou sua caça e foi embora. - Willian, temos ir agora. - Que inferno, não sei
o que fazer. - praguejou. - Eu também não! Mas se não nos mexermos seremos os
próximos!
...
E talvez seriamos, porque
algo perturbou-me a esquerda. Prendi a respiração. Virei lentamente a cabeça e
fitei os olhos vermelhos de um espectro horrendo que me contemplava da
escuridão. Naquele momento parecia que tudo havia parado. A respiração, os
batimentos cardíacos, o frio, o tempo, menos o brilho da lua que era cada vez
mais intenso. Senti a respiração da diabrura agitar o ar ao meu redor. Tentei
me levantar inutilmente, mas meu corpo já não respondia ao desespero. Miranda
estava paralisado. Nossa sentença estava anunciada. Seriamos trucidados. Éramos
nós e fera. Dois contra um. Porem, a derrota para nós era algo certo. E a fera
sabia bem disso. Por se movimentava bem devagar, nos avaliando. Queria dar o
bote certo. O golpe perfeito. O tiro de misericórdia. Vi seu rosto se
aproximar. Seus olhos crescerem diante de mim. Pude ver a face do inferno. Sua
expressão a cada segunda ficava mais amedrontadora. Foi então que ela atacou...
Quantas coisas nós pensamos num momento desses. É incrível como apenas alguns
segundos são capazes de resumir toda uma existência. Nessas horas a gente
entende por que as pessoas dizem que passa um filme em nossa cabeça. Naquele
instante eu só queria voltar a minha vida normal. Só gostaria de tomar café ou,
quem sabe não fazer nada. Só não fazer nada já bastava... Fechei os olhos e
gritei. De dor, de desespero, de medo. E continuei gritando, e gritando.
Gritando até sentir minha garganta arder. Gritando até perceber que nada havia
acontecido. Quando abri os olhos vi dois monstros tentando se levantar.
Pareciam estar um pouco tontos. Na hora não dá pra pensar, mas provavelmente
havia duas feras a nossa espreita, o que era pior, e aos nos atacarem devem ter
se chocado. Mas agora precisávamos correr. Elas já recuperavam o sentido e já
nos olhavam. Em segundos eu e Miranda corríamos por entre as árvores. As feras
partiram em nossa caçada berrando a canção da morte. Elas eram bem mais rápidas
e estavam nos alcançando rapidamente. Quando uma delas estava prestes a me
golpear com uma das mãos cheias de garras Miranda já estava me empurrando para
a direita. Os dois monstros passaram direto batendo nas árvores a frente. Nós
caímos por entre os galhos e arbustos. Recebi um corte quando bati meu braço em
uma árvore. Miranda tinha um sangramento na testa. Levantamos e continuamos
correndo. Pude sentir o ódio que nos perseguia. O puro ódio. E de súbito, tudo
se apagou. Não havia mais lua, não havia mais nada.
...
Sentia dores nas costas, na
cabeça, tonturas. Estava acabado, moído, retorcido, deprimente. Abri os olhos e
não enxerguei nada. Por um instante não ouvi nada. Mas apesar de tudo não
parecia que algo mais grave havia me acontecido. Mas e Miranda? Quando consegui
recuperar os sentidos e consegui enxergar um pouco notei Miranda desacordado ao
meu lado. Estava respirando. Menos mal. Mas o que havia acontecido? O primeiro
som que notei foi uma gota d'água que caia num ritmo bem lento. Não enxergava
praticamente nada. Tive a ideia de pegar meu celular para tentar iluminar,
mesmo que debilmente, o local. Percebi que estava num lugar úmido. Meio sujo.
Olhei para cima e um pouco distante vi uma abertura por onde a luz entrava bem
fraca. Folhas de árvores desciam levemente de lá até o chão. “Provavelmente
deve ter sido de lá que viemos quando mergulhamos no vazio eterno”, pensei.
Senti uma movimentação perto dos meus pés. Era Miranda despertando com gemidos.
- o que aconteceu? - perguntou Miranda. - Caímos de lá. - disse eu apontando
para a abertura no teto. - Uma queda e tanto. Ajuda-me a levantar. - Temos que
dar um jeito de prosseguir. - disse eu. - Não antes de sabermos aonde viemos
parar. - Isso deve ser uma espécie de esgoto. - Ou talvez possamos descobrir o
que mais pode ser isso. - sugeriu Miranda. - Então Vamos! - Mas, talvez não
seja má ideia ficar por aqui mesmo, pois se não fomos devorados é porque
aqueles bichos não conseguem entrar aqui. - Por enquanto. - Disse eu.
Começamos a vasculhar o
local. Era uma sala de cinco metros de altura. Cada um dos seus quatro lados
também media cinco metros. Chegamos a uma porta de metal, muito velha, que
tinha escrito "A morte passou por aqui". Provavelmente obra de algum
universitário grafiteiro. Eu e meu amigo tentamos abrir a porta que parecia
estar emperrada. - Deve ser a ferrugem. - disse Miranda. - Põe na conta do
Reitor e de seu Camaro. - disse eu. - Rimos juntos. Foi um dos raros momentos
de riso naquele dia. Mas tudo foi quebrado por um berro monstruoso vindo de
cima de nossas cabeças. Virei-me e olhei para o alto. Um braço tentando entrar
pela abertura no teto. Depois uma cabeça. E outro braço. A fera não havia
desistido de nós! Ou será que nos escutara? A verdade é que dentro de alguns
instantes estaríamos presos naquele cubículo úmido com um monstro. Tive vontade
de gritar! Não aguentava mais aquilo tudo. Não queria mais fugir. Estava
disposto a encarar a realidade. Não fugiria mais. Encararia o monstro. E se
fosse para morrer seria lutando. Inutilmente mais lutando. Quando eu ia dar um
passo à frente ouvia u ruído. O braço de Miranda puxava meu braço e me chamava,
mas por um segundo eu não tinha ouvidos, só olhos para o monstro. Miranda me
tocou mais uma vez. - Estou quase conseguindo abrir a porta, seu infeliz. Mas
se você não se mexer e não me ajudar de nada vai adiantar. - Me virei
rapidamente e comecei a ajudá-lo a abrir a porta. Ela estava muito emperrada.
Mas Miranda já havia conseguido abri-la um pouco. A fera emitiu um ruído
desafiador. Estava quase conseguindo entrar no recinto. Como que movidos pela
vontade de viver eu e Miranda respiramos fundo e puxamos com todas as nossas
forças de uma só vez. Lentamente a porta se abriu. A fera pousou atrás de nós.
Entramos o mais rápido que podíamos, mas havia um problema: como fechar aquela
porta enferrujada. Não sabíamos. A fera veio em nosso encalço. Fizemos toda a
força que nos restava naquele instante para fechar a maldita porta. A morte não
passaria por esta porta outra vez. Pelo menos não naquele momento, pois por um
milagre a porta se fechou facilmente. Passamos a tranca. A fera se chocou
violentamente contra a porta berrando suas monstruosidades. Fez isso um, duas,
três, quatro vezes e depois parou. - Parece ser seguro aqui. - sugeri. - Assim
espero. - disse Miranda. - Viramos-nos para ver onde estávamos. Quase fiquei cego, pois agora o local era
muito bem iluminado. Tochas lançavam luzes tremeluzentes por todo um longo
corredor. – É realmente aqui é mais agradável. - deu de ombros Miranda. -
Porém, um som violento veio de trás de nós. O monstro tentara mais uma vez
destruir a porta, só que dessa vez ele obteve mais sucesso. A tranca estava
quase quebrando. De repente um braço atravessou o metal envelhecido da porta. A
morte estava querendo passar...
FIM DA PARTE DOIS.
SE GOSTOU ME SIGA, POR FAVOR. :)
SE GOSTOU ME SIGA, POR FAVOR. :)